terça-feira, maio 31, 2011

Sobre a doçura da vida

Voltávamos da escola, sempre falantes, mais juntos do que em qualquer outro momento _ afinal, aquele era o nosso instante, quando éramos só nós dois, dividindo as primeiras horas dos nossos dias.
Os mais velhos seguiam à frente, porque andar de mãos dadas com o pai era coisa para quem ainda levava lancheira e usava uniforme infantil demais. Eu adorava ser a caçula e ter o privilégio que eles desperdiçavam. Tolos, que não aproveitavam os conselhos, que não desfrutavam dos sorrisos silenciosos (fazendo o corpo dançar, como se a alma se divertisse e mandasse lhe acompanhar na festa).
Quando as minhas frases soltas jogavam mais ingenuidade do que o costume, então eram gargalhadas fortes que enchiam o ar. Eles, os mais velhos, fingiam não se importar, mas então eu gargalhava junto, balançava o corpo junto, provocava com a nossa farra.
Num daqueles dias, porém, abusei da paciência do meu velho, quase ganho umas palmadas, mas entendi o significado da doçura, primã-irmã do amor de pai. Passamos por uma vitrine tentadora, loja nova no caminho, com filhotes de cães pulando para todos os lados. Latidos finos, patas minúsculas e arredondadas, pelos fofinhos, olhos espertos pedindo colo. “Quero um, compra?”, o pedido. “Não”, a sentença curta e definitiva. “Quero um, quero um, quero um” foi a ladainha pelo longo trajeto, uma quadra após a outra. Atrasei os passos, empaquei, ameacei greve de silêncio, reclamei da vida. E ele, firme. Até que _ com aquela compaixão que só os pais sentem frente ao choro de um filho _ ele sugeriu: “Que tal um pão doce?”.
Amuei e foi difícil desfazer a tromba. Onde já se viu oferecer um pão doce em troca daquele cachorrinho perfeito? Havia perdido a batalha. Fui rendida e cedi aos encantos dos pães cheios de coco açucarado. Ele parou no balcão, pediu os pães e ficou ali, pacientemente, esperando que desfrutássemos do lanche em horário indevido e que certamente lhe renderia reclamações em casa.
Entre uma mordida e outra, seus olhos me acertaram. Toda a malcriação já havia sumido, da minha parte. Todo o amor do mundo permanecia com ele, feliz diante das crias. Terminado o lanche, seguimos adiante, de volta para casa. Colamos novamente nossas mãos e retomamos os sorrisos de onde paramos.
Entre tantas outras coisas boas que meu pai me deixou, a doçura dos seus gestos é meta que tento alcançar diariamente. Mas, confesso: estou longe de chegar aos pés de tamanha grandeza.

Mágoa de Cabocla

Mágoa é veneno quente que entorpece e mata devagar. Mágoa é pior que cigarro, cachaça, mais letal que qualquer droga. Mágoa anestesia os sentidos, faz tremer as pernas, tira o ar, rouba a razão, cobre a gente de frio. Mágoa é coisa ruim, tipo mau-olhado: põe nódoa no viço, deixa os olhos fundos, corrói o corpo e a alma, em silêncio.
Um dos amigos do meu pai disse uma vez, naquelas conversas das sextas-feiras na varanda: “Prefiro uma dor de dente a sentir angústia. Não há nada pior do que levar nas costas uma mágoa mal curada, uma bordoada”.
Estava certo o amigo do meu pai. A dor de sentir-se traído, incompreendido, desrespeitado, ultrajado, é nó cego, como dizem os matutos. Não há ser humano que suporte calado. Não há quem diga que não está doendo, não há disfarce. E a tal da mágoa é coisa ruim de curar. Até se encontra o perdão, numa esquina qualquer. Contudo, perdoar não é esquecer. E isso é bem coisa de mágoa entranhada.
A mágoa bate na porta quando você pensa que já vai dormir em paz. Martela centenas de vezes as palavras que lhe cuspiram na face. Repete, feito disco arranhado, a romaria desafinada, badala aos quatro ventos a dor que lhe faz chorar. Faz questão de lembrar o que você pagaria qualquer preço para esquecer. Basta ensaiar um “não lembro mais” e a bruxa da mágoa diz “estou aqui”.
Há coisas que não se deve dizer a quem se quer bem. Porque isso quebra o elo sagrado que une os amigos, os irmãos, os amores. Há coisas que não se deve dizer a ninguém, porque o vento pode mudar a direção, a bola pode quicar e o tiro sair pela culatra.
Há sentenças que podem e devem ser ditas, mas há a escolha pelo caminho suave ou pela agressividade. E tem mais: a verdade é relativa e não foi comprada por ninguém. Portanto, cada um com a sua verdade, com a sua medida do que é certo e errado, sem julgar ou condenar ninguém por pensamentos opostos. Só quando a minha medida ultrapassar o limite do meu vizinho. Enquanto isso não acontece, cada um na sua e todo mundo junto. Isso é harmonia. É assim que a banda toca.
Essa história de que “a verdade tem que ser dita” dá nos nervos e só causa estragos. Tem gente que perde a mão e descamba a plantar mágoa quando cai no erro de que “a verdade tem que ser dita, a verdade tem que ser dita”. Cada um com sua verdade, cada um com suas querências, cada um com suas escolhas. E... todo mundo junto.
Hoje acordei com uma mágoa danada no peito. E dói que chega a dar arrepios. Uma hora vai passar, mas eu sei que não vou esquecer. Tudo porque alguém achou de tentar me dizer “verdades”. Alguém que quero tanto bem e que me é tão caro, cismou em me dizer verdades que não são minhas, que não me servem, que eu não compraria, que não quero para mim.
Mas não dá nada. Vou tocar em frente e fazer um dia melhor acontecer. Quem sabe a mágoa resolve me deixar cantar um samba, enquanto mando meu recado a esse amigo querido, tão equivocado a meu respeito? Eu sou feliz assim.

Tarde demais

Ela disse que não sei mais sonhar. Ela e sua mania de teimar em dizer o que pensa, mesmo quando o que pensa nada tem a ver com a verdade. A minha verdade, pelo menos.

Ela me disse que já me viu melhor, que eu já tive mais viço, mais alma, mais paixão e mais vontade. Cobrou-me desejos dos vinte anos quando já beiro os quarenta. Cobrou-me a luz que me emprestou e esqueci de multiplicar, dividir e devolver.

Ela disse que nada mais em mim se parece comigo, que nada mais resta de bom, de tudo que já conheceu e lhe fez ter querência, afeto, admiração. Ela me disse. Disse tanto e com tamanha força que me despedaçou feio. Baqueei, tremi, suei frio e quente. Deixei-me levar por tristeza tão imensa que quase acreditei em tudo que ela disse. E com a mesma força.

Perdi o sono, a fome, a vontade. Perdi a fé, a esperança e tive medo, muito medo de ter morrido antes mesmo de viver tudo que eu pensei ter vivido. Tive medo de ter sonhado com tudo que achei tão meu, tão concreto, tão bonito e tão único. Tive medo de realmente não ser mais aquela menina. A que tudo enfrentava sem qualquer receio de não conseguir, a que buscava água na terra mais árida (e encontrava sempre), a que apostava, arriscava, com coragem e persistência.

Ela disse que era tarde demais para mim. E disse que não havia mais nada a ser feito por mim, comigo, para mim. Que os caminhos, todos, estavam fechados, apagados à minha frente. Que a luz no fim do túnel não existia, que os meus dias eram findos e minhas preces certamente não seriam mais ouvidas por Deus. E me falou em caridade... em caridade.

Ouvi tudo com amargo terrível nos lábios. Minhas lágrimas deixaram sulcos em meu rosto, marcaram a ferro a minha alma. Por onde passaram, arderam como brasa. Meu grito ficou contido na garganta, latejando, doendo, batendo forte _ como se o coração realmente pudesse me saltar à boca. Coração que eu já nem deveria ter, segundo ela. Já que tudo estava perdido em mim.

Mal sabia ela que havia um espelho em meu quarto, quando cheguei em casa. E que ele me salvou a vida.

Ainda havia em mim dois olhos. Dois olhos castanhos e lembranças. Lembranças coloridas. Havia também a música, que ouvi baixinho. Havia um pai, uma mãe e três irmãos em mim. Também encontrei lá quatro crianças lindas, que me sopraram a face, com uma ternura tão imensa que me fez sentir o beijo de Deus na primeira criatura.

Ainda havia em mim a coragem de chorar. Chorar tudo, recobrando a força, a vontade, o desejo, a fé. Quebrei meu silêncio, o jejum e todas as correntes que me travavam os pés.

Não, não é tarde. Não tenho mais vinte anos, não tenho mais a inocência, não tenho mais o vigor de antes. Tenho, no entanto, dignidade, herança boa. Tenho valentia de sangue sertanejo, tenho saudade, tenho lembranças e muita estrada atrás e à minha frente, sim.

Bendito espelho que me fez enxergar quem sou. Bendito amor que me tenho, que me fez e que me leva a querer continuar vivendo e apostando em mim.

Ela e o mar

Jamais havia visto algo igual. Entre o sertão e a nova cidade que lhe acolhia, tudo era novidade. Até mesmo as pedras do caminho, a poeira escura, quase molhada, as nuvens _ tão baixas que a impressão que tinha era de ter alcançado as alturas (ou teria o céu descido à terra?).
Os pássaros voavam bem perto do velho caminhão, que levava a família inteira, agregados, mobília, lembranças e os animais, que reclamavam de sede, calor e do sacolejo constante dos pneus carecas na estrada esburacada.
A esperança de que um dia voltariam os mantinha vivos e com forças para suportar a distância, as ausências de quereres e o enfrentamento com os novos costumes, que não lhes dariam arrego: ceder ou desistir e voltar atrás.
Mas voltar para onde? _ pensava a menina, prestes a completar treze anos, ainda amante das bonecas de pano, dos banhos de chuva (quando havia a chuva) em meio à euforia nas ruas, dos doces feitos com água e açúcar, no velho tacho da mãe, incansável madeira, dura de envergar.
Maria só pensava em uma coisa. Martelava, alimentava, acalentava somente aquele sopro bom que lhe haviam dado antes da partida: ela certamente veria o mar. Teria o mar todinho pra si, sem ter medo algum de que um dia ele pudesse ter fim.
“O mar não seca. Finge que vai embora e volta, o tinhoso”, contou Jandira, prima de sua mãe, antes do último dia em casa. E foi falando, quase como quem dizia uma reza, contava segredo, pra que o mundo não soubesse que ela sabia. Mas ela sabia. E foi dizendo: “O mar brinca com os pés da gente, fica manso, fica brabo, fica manso fica brabo... É como se fosse o céu, só que mexe o tempo inteiro e tira a areia debaixo dos pés da gente”.
A menina ia se embalando, pensando no balanço que as palavras tinham e pôde sentir aquilo que lhe diziam ser o mar.
“Tem mar que parece gente. Canta, fala baixinho, sopra coisa boa, sopra coisa ruim. Tem mar que bufa feito a serra, quando cachimba no fim da tarde. Tem mar que só fica ali, quieto, sem se mexer, pronto pra dar o bote. É preciso ter cuidado com o mar. Porque ele às vezes enfeitiça e puxa a gente pra dentro dele. E o mar, o mar não tem cabelo onde a gente possa se agarrar”, contou Jandira.
Aquela romaria lhe veio à mente, como se aliviasse o cansaço da viagem. Até que, de repente o motor ficou calado. Alguém lhe tirou do sono leve e mostrou a casa nova. O mar ainda não estava ali. O encontro ficou para anos mais tarde, quando já tinha marido, filhos e netos. Muitos netos _ nascidos e crescidos de cara para o mar.
Naquela tarde, quase meio século depois da despedida, do adeus a Jandira e ao sertão, ela não esquecia os conselhos e a reza doce que falava do mar. Seu coração sertanejo avisava às crianças, que traziam seus traços e repetiam seus gestos, sorriam, quando ela repetia sem parar: “Voltem! Voltem! O mar não tem cabelo!”.

No meio do caminho

Meio-dia, sol de rachar e quatro meninos dispostos a desafiar as impossibilidades a qualquer custo. A missão era mais importante que os obstáculos e eles sabiam disso, apesar do pouco tempo no mundo.
Enquanto os mais velhos apressavam cada vez mais os passos, os menores iam mais lentos, aproveitando tudo que viam pelo caminho. E não era pouco. Tinha de tudo naquela estrada. Pedra grande, pedra pequena, flor rasteira, flor estranha, espinho, barro, resto de bicho e, de vez em quando, carroças, bodes e lagartos enormes.
Com perninhas de sabiá, a menorzinha fazia cantar as sandálias, tentando pegar o que de melhor havia entre aquilo tudo e acompanhar a pisada do irmão. O silêncio só era quebrado por alguns assovios do garoto, buscando imitar os pássaros ou chamar o cachorro, que vinha atrás, se perdia e os achava, cambaleando de cansaço. Valente, o bichinho não desistia também, embora desconhecesse o rumo da viagem e o porquê.
Eram cinco, na verdade. Porque aquele cachorro era mais esperto que muita gente, diziam. “Não fala para não ir à escola”, sempre lembrava o pai.
Nada levavam além da certeza de que era preciso seguir em frente, apesar da fome, do calor, da sede e das bolhas nos pés. Além das brotoejas, que brotavam às centenas, no pescoço, atrás das orelhas e nas costas. Aquilo coçava que era um inferno. Doía, coçava, ardia e alfinetava a pele, por baixo das roupas.
Eles não desistiam. Iriam até o fim. E assim foram, até que o mais velho avistou o que queriam. E pediu que os irmãos apressassem o passo. Correram e quase cortaram os pés, em meio aos pedregulhos.
Entraram pelo mato, em meio às urtigas, carrapateiras e ao desconhecido, atrás do maior. É ali, peguem tudo que puderem levar, nas mãos e nos bolsos.
Ágeis, foram catando os matinhos que o irmão mostrava e enchendo a roupa. Cheirava forte aquela erva. Cheiro bom, como se a terra deixasse ali sua seiva, sua essência. Dava vontade até de comer, pelo cheiro e pelo vazio na barriga. Mas não podiam desperdiçar. Quanto mais, melhor, lhes falaram em casa, antes da saída, quando os galos ainda cantavam e o sol era um tímido rasgo no céu.
Fizeram o caminho de volta bem mais animados e até ensaiaram um canto qualquer, aprendido nas inúmeras andanças, naquele mundo que era só deles.
Ao dobrarem a última curva, viram a mãe na soleira, com a mão sobre a testa, tentando busca-los à distância. O aceno rápido da mulher os fez correr ainda mais. Podia não dar tempo e tudo teria sido em vão.
Entregaram tudo e sacudiram cada pedaço de pano, para ver se tinham entregue todo o mato colhido. O chá foi feito, mas o caçula não resistiu e nem chegou a tomar do remédio trazido pelos irmãos. O cheiro da terra ficou no ar e não foi capaz de estancar as lágrimas dos pequenos, que sentiram a dor mais amarga de se provar nessa vida. A fome passou, os calos adormeceram e a noite chegou mais cedo, deixando para sempre o sol do meio-dia queimando a retina. Naquele momento, a esperança virou pó.

quinta-feira, maio 26, 2011

Ana Branca da Silva

Ela apareceu de repente em nossa vida. Um dia, pela manhã, acordamos e estava lá. Sentada num banco tosco de madeira pobre. Quieta, calada. Antes de ir à escola, sempre aproveitávamos os goles rápidos do primeiro vento fresco do dia. Observávamos a rua querendo acordar, com os carros abafando os passarinhos, e seguíamos, mãos apertadas entre os dedos firmes de meu pai. Eu e minha irmã. Naquele dia, ela estava lá. Encostada no muro, com chinelos gastos, roupas puídas, olhos fixos no asfalto, que certamente a levavam a um lugar bem longe dali. Congelei a imagem, nos breves segundos em que me olhou e sorriu.

Tive medo. Das mãos gastas, surradas e ásperas. Das unhas grossas, amareladas e partidas em linhas horizontais, como ondas na cartilagem.

Os cabelos lisos misturavam o amarelo, o branco, o cinza e um leve tom preto, amarrados com pano rasgado. Ao lado do banco, saco plástico e bugigangas.

Minha manhã demorou a passar. Eu não conseguia esquecer. Piedade, medo e curiosidade imploravam aos ponteiros que voassem. Naquela tarde, depois que cheguei em casa, fiz as tarefas mais rápido e desci ao seu encontro. Depois de me oferecer biscoitos e um lugar na calçada, desenrolamos nossos novelos.

Ela pedia esmolas, descobri, e tinha 80 anos. Eu aprendia lições na escola, contei, e faria oito anos em pouco tempo. Não tinha lar, parentes, amigos nem história, me disse. Eu tinha um armário com brinquedos, pais, irmãos e agora uma amiga. Viramos boas companheiras de história, por longos meses. A calçada passou a ser meu melhor lugar depois das aulas. Fui promovida a tesoureira de seus ganhos diários. Contava as moedas, separava as cédulas e guardava no saco de bolinhas de gude. Em troca, ganhava o lanche da tarde, abraços calorosos e o melhor sorriso. Aquele era o nosso segredo, pensava. No fim do dia ela levantava, recolhia banco e sacolas e ia embora. Nunca soube para onde.

Um dia, porém, alguém se encarregou de contar aos meus pais. "Onde já se viu? Pedindo esmolas?". Eu só queria cuidar dela, é a minha melhor amiga, argumentei. A história ganhou os corredores do prédio. Fui proibida de sentar na calçada. 

Diante de minha tristeza incômoda em casa, minha mãe resolveu a questão com uma surpresa. Reuniu amigas, vizinhas e descobriram onde ela morava. Juntaram comida, dinheiro, remédios, roupas e se encarregaram de fazer a doação. Só então descobri seu nome: Ana Branca da Silva.

Depois daquele dia, nunca mais nos vimos. Voltei à calçada e esperei, sentada, no mesmo lugar. Semanas seguindo o mesmo ritual. Até me dar conta de que ela não voltaria. Mais de vinte anos passaram e eu ainda busco, em todos os caminhos por onde passo, o conforto e um abraço igual ao dela. 

A dona da história

Éramos mais que vizinhos, naquela rua larga onde morávamos três meses por ano, durante as férias de verão. Havia algo que nos ligava, não só por afeto ou camaradagem. A paixão pelo lugar, a cumplicidade em correr de madrugada à praia para ouvir o batuque do candomblé e saudar Iemanjá nas noites de lua, os acordos para ver o nascer do sol - sem "ter nem pra quê" - as buscas por lenha no coqueiral, em tardes mornas. Talvez fossem as caças às tanajuras nos dias de sol com trovoada, os banhos de mar ao entardecer, os almoços coletivos nos quintais, cozidos em fogões a lenha. Podiam ser também as cantorias das comadres, cada uma em seu quintal, soprando o calor e as dores. Há quem diga que eram os abraços apertados e sem jeito nos aniversários, nas viradas de ano, nos nascimentos dos filhos, nas avistagens dos barcos chegando do alto-mar, com maridos sedentos, cansados, carregados de peixes e saudades.


Ninguém define, até hoje. Sabemos, porém, que éramos mais que vizinhos. E ela, senhora daquele arruado, era um mito para mim. Cansados dos folguedos diurnos, jantávamos cedo e esperávamos o primeiro sinal: o lampião aceso no terreiro avisava que ela abriria a roda de causos. Troncos vencidos de coqueiros mortos, tombados no terreiro central, eram os bancos - onde meninos, mulheres, velhos e jovens se acomodavam. Rua à meia-luz, cortada pelos candeeiros tímidos nas casas, onde a única eletricidade presente vinha do peito de cada um, tremente, descompassada, à espera. Ela então começava: foi assim, eu vi, ninguém me contou não. E desenrolava o novelo bem alinhavado de cenas. A cabra alada era nossa velha conhecida.


Fruto de uma ingratidão de filha, que não respeitou a carne de sua carne e ousou bater na própria mãe. Castigo divino: virar cabra em noites escuras, voando perdida pelas ruas da cidade. Diziam que durante o dia era a mulher mais linda do vilarejo. Mas o cansaço das peregrinações assombrosas tirava a força de desfrutar a vida. E ela só dormia, todo o dia, o dia inteiro. Entre uma história e outra, deixava seus ouvintes petrificados com seus arrepios gelados, mudando o tom da voz, grave: um irmão do outro mundo acabou de passar por aqui. Boa noite, irmão.


Murmúrios, sinal da cruz, chapéus ao peito. Quando se empolgava ou se perdia no enredo confuso, inventado e recriado um milhão de vezes, soltava o bordão: “lai vai, lai vai, lai vai...pei, pei, pei...e foi aquele pandimonho...”. Em minhas últimas férias, já morando no sul catarinense, fui visitar o canto dos meus verões. No lugar dos troncos, bancos de praça. Rua cheia de luzes de mercúrio. Bati à porta. Caminhando com dificuldade _ arrastando uma perna doente, apertando os olhos para reconhecer a visita _ vi se aproximar de mim a velha cabocla, encorpada, de vestido largo.


"Meu Deus, não é que o mundo não se acaba mais?" Renovamos nosso abraço e ficamos assim, por bom tempo, esmagando a saudade. Falei que agora moro longe e trabalho escrevendo sobre os dias das pessoas, contando _ de outro jeito _ histórias. Ela sorriu, bateu de leve em meu rosto e me beijou a mão. Por alguns segundos, finalmente entendi o que nos ligava. Na despedida, me pediu que não esquecesse de voltar. Retribui o beijo e lhe disse, com toda a certeza do mundo: Eu nunca fui, Dona Iracema. Nunca fui.

Entre a terra e as estrelas

Naquele ano nós decidimos não fazer grande ceia no Natal. Por motivos nossos, meus pais nos consultaram sobre o que pensávamos e concordamos com eles. Nostalgia imperando em casa, comemos cedo, vimos a programação da televisão e nos rendemos aos pijamas antes das dez badaladas noturnas.


Sabia que a praça estaria cheia àquela hora, para a celebração da Missa do Galo. E o grupo de sempre estaria desfilando as roupas novas, festejando os presentes e as férias de verão. Eu sabia e queria também estar lá, mas como nos anos anteriores, feliz. Não fui. E deitei para dormir depressa.


Entre o primeiro e o segundo sono, pedrinhas na janela incomodaram. Tentei ignorar. Mais e mais pedrinhas. Chuva de pedras.

Quase ganho cicatriz na testa. O coro desafinado mais lindo que já vi, entoando um Noite Feliz partido em risadas. Eram eles. Todos juntos, vestidos de festa, vindo me buscar.


Aquele foi um dos mais felizes entre tantos natais. Vesti rápido a roupa nova, pedi a bênção e ganhei a rua com eles. Onde passávamos, cantávamos juntos. E a fonte que fazia jorrar sorrisos era inesgotável. Nunca vi tanto assunto, tanta fome de alegria, tanta gana de ser e fazer feliz.


Éramos 15 aprendizes do destino, ligados pela amizade que unia nossos pais e pela força que nos juntava, em qualquer circunstância da vida.

Naquela noite, fomos à missa, lotamos a pizzaria, visitamos conhecidos e decidimos terminar nossa festa na praia. Jogamos futebol e caímos no mar, encharcando as roupas novas com água salgada, para o desespero de nossas mães.


Para mim, mesmo depois de 20 anos, nada abalaria aqueles meninos e meninas _ que supunha viverem guardados num espaço alternativo, mantendo intactos os sorrisos, a ingenuidade e a vida plena, sem máculas, sem riscos, sem fim.


Seríamos eternos, naquelas ruas de paralelepípedos. Não deixaríamos de passar embaixo dos castanheiros, com pressa e medo de assombração. Teríamos todos os caminhos abertos ao nosso desejo de ganhar o mundo. Nossas casas conservariam o tom da tinta fresca, renovada a cada fim de ano. Nossas portas ficariam sempre abertas, esperando os amigos. Nossos pais sempre estariam deitados, à nossa espera, nos fins de noite. Aniversários, natais, carnavais, páscoas, bailes, festas de ruas, batizados. Tudo seria eterno, naquele arruado de interior.


Lembrei desse Natal, em pleno mês de março, porque essa semana recebi a notícia de que nosso grupo começou a se partir. A ciranda perfeita perdeu um par de mãos e metade da alegria com a despedida de alguém.


Fomos pegos de surpresa e tomamos ciência: não somos imortais. Alguém vai embora aos 39 do primeiro tempo, sim. Alguém que incendiava os dias com energia intensa. Que nos puxava e nos levantava do chão, se ensaiássemos um tombo.


Podem dizer que ela foi embora, que não volta mais, que não terei mais pedrinhas na janela nem gargalhada brincando na rua. Eu sei que terei. Porque tenho certeza de que aqueles meninos e meninas hão de viver para sempre, nos anos guardados pelos anjos, nalgum lugar entre a terra e as estrelas.

Manga com Leite

Misturar manga com leite pode fazer mal. Assim como tomar banho depois do almoço, lavar cabelo em noite de lua cheia, vestir a roupa pelo lado avesso. Crendices que regem a vida e vão nos ensinando, sob o carinho das mães e avós, a ter limites. Demorei a tomar manga com leite e ainda hoje vou guiando meus passos segundo o que me ensinaram em casa.
Por via das dúvidas, por exemplo, não corto encruzilhadas, não passo embaixo de escadas, não vou nadar depois do almoço. Se uma coruja pia perto de casa, bato na madeira, peço proteção aos céus. Se alguém engasga, apelo para São Braz, levanto os braços e acredito ter salvado a vida do cristão afogado. Tem coisas que são assim, não saem de nós e vão moldando nosso caráter, desenhando nosso destino.

Entre as coisas que ficaram em mim, grudadas entre a pele e a alma, está o meu modo de olhar o ser humano. E, falando muito sério, não consigo achar que um carro do ano possa valer mais do que um bom amigo. Não consigo entender como há quem meça o valor de gente como quem põe preço num saco de farinha.

Dia desses, lá em casa, me falaram que preciso ter mais ambição nessa vida. Que o mundo não gosta de quem gosta do mundo. Eu não sei não. Prefiro mesmo apostar no que me ensinaram. Eu gosto de gostar das pessoas. Claro que não é qualquer um que atravessa minha intimidade. Dou preferência a quem me encara e me enxerga. Compro briga por quem tem os pés no chão e conhece a textura da areia fina. Argumentando com a pessoa que tentava me dar mais rumo na vida, contei a história de Maria e seus sapatos finos.

Ela colecionava mais de oitenta pares. Botas, sandálias, tênis, altos, baixos, pretos, brancos, coloridos... Tinha um orgulho, a moça, de seus sapatinhos... Um dia, olhou meus pés e queixou-se do meu velho tênis esfolado. Mas ele está em meus pés, criatura! O que te incomoda? "Não parece com você e não vai lhe levar a lugar algum", argumentou. Não tentei lhe dizer o que pensei, naquele momento. Palavras ao vento, apenas.

Voltei para casa tentando entender como alguém poderia viver assim: num relacionamento apaixonado com oitenta pares de sapatos. Eu, com meu tênis surrado, andei em mil estradas, fiz mil amigos e estiquei minha história. Ela não pisou solo algum além dos limites de seu quarto. Desde aquele dia, não a procurei mais. Não daria certo levar adiante aquele convívio. Somos feitas de massas distintas, moldadas por oleiros bem desiguais. Dei razão à minha mãe, minhas tias e minha avó. Não se deve misturar manga com leite. A mistura pode ser bem ácida e pode fazer mal.

Aceitação

Porque enquanto busquei seus olhos - porta de entrada para os melhores caminhos daquilo que você guarda - fui apenas um mal estar passageiro, um "não-estar-à vontade", um querer com pressa de fechar a porta e dormir.

Porque enquanto fui totalidade, você fez serão para não se (me) permitir. Você acha saber tudo de mim, de si e do meu mundo. Não quero mais correr o risco. Não lhe dou mais permissão.

Porque você entende coisas que o meu entendimento não acompanha. Por não me acompanhar, não tentar chegar nem sair de si, não vai a lugar algum e mata a possibilidade de matar a fome.

Eu sei muito bem onde moram meus erros. Em cada passo que dou vejo os abismos que me cercam, mas vejo também sorrisos puros, paredes coloridas, janelas que esperam a brisa, ali bem pertinho do mar.

Quero a paz que move a minha alegria. Quero amor, quero folia, risos, colo, violão e voz. Quero um pouco mais de mim, quero construir o nós. Não há pior solidão do que a que se sente acompanhada. Não vou por essa estrada. Entendo bem quando o encanto acaba. O meu se foi.

Não preciso, apenas desejo. Não é pecado se jogar pra um beijo... Não é errado se querer amar, partilhar, redobrar cuidados, ter alguém do lado.

Sim, trago imensos pecados nesse meu livro inacabado, que escrevo com fervor de principiante. Mas nada será como antes. Essa é a condição.

Deixei o que ninguém alcança ao seu dispor, para as visitas de todas as noites, para o abraço, o laço, a mistura, a querência, a imensidão inexplorada que mora em mim. Abri a guarda, derrubei defesas e me entreguei de bandeja. Nada disso foi maior do que um risco na lataria.

Não vou lamentar. Hoje temos o que devia ser.

Vou seguir em frente, cavando abraços, repartindo amigos, festas e partes da superfície - de onde você me olha, por onde você quer andar.

Não tente me achar. Eu fui embora. Não parece, mas fui. Mesmo estando ao seu lado agora. Fui... Lá, pra dentro de mim outra vez. Onde eu sempre morei e onde sempre vou estar. Fui e não vou mais voltar.

Meia-noite

Dizem que as crianças são puras, ingênuas. Penso que sabem tudo e escondem o jogo, para que possam desfrutar em paz dos melhores anos de suas vidas. Dizem também que os cachorros são companheiros, leais. Os gatos ariscos e os cavalos misteriosos. Mas nada dizem das cabras. Sim, sim, as cabras. Com uma delas aprendi que os bichos nos mantêm cativos, e não o contrário.


Morando numa cidadezinha do interior pernambucano - onde o apito da usina de açúcar mantinha a vida dos moradores sob controle e os banhos de rio eram o melhor programa do fim de semana - meus companheiros de brincadeiras eram os filhos dos marceneiros, pedreiros e aboiadores.


Nossa rotina era escola, campinho tomado de lama perto da linha do trem, bolas de gude, piões, pipas e circos improvisados no quintal de casa. Meninos e meninas desempenhavam o mesmo papel: o de exercer a liberdade plena.

Um dia, porém, a cabra do vizinho deu cria. Rebuliço geral. Larguei as sandálias de borracha, esqueci tudo e corri para ver. De dentro da bolsa rosada, vimos a cabeça abrir caminho. O dono dos bodes e cabras, que dividiam a rua conosco durante o dia, ajudou o filhote. Fêmea, preta, com uma mancha branca em forma de nuvem na testa. Pernas tortas e frágeis. Tratou de ficar de pé. Quis, no mesmo minuto, ela para mim.

“Por favor, eu como tudo, durmo cedo, vou para a escola sem chorar e nunca mais brigo na rua”, prometi em casa. A ladainha durou dias. Meus apelos foram ouvidos. Voltei da escola e passei na garagem de tábuas úmidas onde ela morava. Não estava mais lá. “Foi vendida”.

Entrei na cozinha com a gola do uniforme encharcada. Culparia meus pais até o fim dos meus dias pela maldade de me afastar dela. Meu lamento não durou cinco minutos. Um berro estridente e fino chamou minha atenção e me levou ao quintal. Lá estava ela. Amarrada, com sino de latão no pescoço, tentando se livrar da corda entre saltos e balançar de cabeça, agitada.

Meia-noite, batizei. Chamava e ela atendia correndo. Levei para o campinho e surpreendeu nas roubadas de bola, enlouquecendo os meninos – que tentavam ensinar o truque aos seus tolos cachorros. Esperava minha chegada das aulas feito cão de guarda. Ao primeiro sinal de meus passos na esquina, apoiava as patas no muro e berrava. Foi assim por quase três anos.

Num sábado, igual a todos os sábados, fizeram almoço de despedida da cidade em nossa casa. Pai transferido para a capital. Vida nova. Festa. Vizinhos, colegas da repartição, parentada.
Estranhei o silêncio no quintal. Corda jogada num canto. Baque no peito. “Ela fugiu”, me disseram. “E não teremos como procurar. Mudamos amanhã”. Chorei a viagem inteira. Pensava que ela voltaria e encontraria tudo vazio, sem ninguém. Sofri por mim e por ela.

Anos mais tarde, numa conversa informal de domingo - enquanto saboreávamos o bode na brasa em casa – me contaram a verdade. “Você comeu a Meia-noite no almoço de despedida. Não havia como trazer”.
Meus vinte e poucos anos não adiantaram de nada. Fechei os olhos, corri para aquele quintal, naquela casa de cidade pequena, soltei a corda e deixei que fugisse. “Desculpe, minha filha, não havia como trazer”, repetiram. “Ela veio, ela veio”, disse em meio a um sorriso desbotado. Perdoamos.

Louro da sanfona

Ele tinha sete anos e nunca tinha visto a chuva. Uma vez só, ele quase encontrou com ela, quase chegou a vê-la, mas caiu doente, justo no dia que ela veio e não pode sair da cama. Diziam que foi a coisa mais linda de se ver. Ele só ouviu o barulho dos latões e a algazarra dos amigos, dos velhos, moços e o chororô das mulheres, agradecendo aos santos por toda a lama que invadia a cidade e lambuzava a cara de todo mundo.


Chalapt, chalapt, chalapt. As alpargatas zunindo no meio do mundo... E ele doido pra levantar daquela cama de palha, sair do quarto escuro e se fartar de chuva. Não foi. Ele sempre não ia, não sabia, não conhecia, ficava para trás.


Por isso, tomou força, cresceu bem muito aquele intento: ele faria chover, faria sim. Mas como fazer? Um dia ele ouviu Zé da Gaita dizer que a música chamava coisa boa, trazia fartura das boas. Quem canta os males espanta, dizia a mãe. Pois aprenderia a tocar um instrumento. E foi atrás de Xerém, porque ele era sanfoneiro conhecido, tocava em tudo que era festa, e sabendo o motivo pelo qual ele precisava aprender, não se negaria a ensinar. Afinal, quem não queria ver a chuva descendo à terra?


O homem abriu aquele sorriso amarelo _ porque sim, tudo era amarelo naquela pessoa: dentes, mãos, unhas, olhos e cabelo. “Tocador? Você quer ser tocador, menino?”. O homem ainda zombava dele? Depois de muito balançar a pança redonda, bater os pés com força no chão, jogar o chapéu sobre o balcão e olhar bem firme para ele, Xerém tossiu de leve, cuspiu fora o fumo e aceitou a tarefa. “Pois se você fizer chover mesmo, nem precisa me pagar nada”. Trato feito.


A sanfona pesava, machucava as pernas finas, calejava, doía. Mas era preciso suportar. O nhém, nhém, nhém desafinado aos poucos foi tomando corpo e ele olhando pro céu. Nenhuma nuvem aparecia, mesmo com os primeiros acordes, depois de duas semanas de aulas _ quando Xerém achava tempo e vontade pra ensinar ou quando não estava bêbado demais para isso.


Numa noite quente, enquanto tentava tirar algumas notas da sanfona velha, pensou: não adianta, vou morrer e não vejo a chuva. Foi sentar embaixo do umbuzeiro no quintal. Desistiu de ser homem, de trancar aquela mágoa da terra seca que lhe impedia de ser feliz, e chorou. Chorou mesmo, de soluçar, feito menino chora. Deixou que toda a raiva saísse pela garganta, que todos os sonhos escapassem nas lágrimas e fossem embora de uma vez, para nunca mais voltar. Porque não adianta sonhar quando a única certeza que se tem é que nada acontece para quem tem sete anos, se mete a besta e quer desafiar Deus nessa vida. A chuva não era para aquela gente. Ali, naquele fim de mundo só tinha era desgraça mesmo, pensou.


O choro cresceu, o lamento foi ficando fino, feito som de sanfona velha. A música mais triste que ele já havia tocado saía de seu peito pequeno, apertado feito fole gasto. Os primeiros pingos tocaram o chão. Ele não se deu conta, porque era tanta lágrima que nem ligava mais. Mais um, mais outro e mais uns vinte pingos fortes. De repente, ele parou de chorar. Viu as portas dos vizinhos se abrirem. Amuados, sem jeito, como se sentissem vergonha dos seus desejos, eles ganharam a calçada.


A chuva! A chuva veio! Gritaram os amigos, lhe chamando para a festa. Era a sua vez, era chegada a hora. Sem medo algum de estar sonhando _ e se fosse sonho, ele morreria dentro dele _ Lourival tirou a roupa, correu pro centro do terreiro vermelho e se deixou tocar por Deus, ali, no meio da lama quente.


Nasciam ali, naquele instante, as melhores canções que o sertão conheceu. Morria ali o menino e surgia Louro da Sanfona, o maior tocador que existiu no Pajeú.

Banzo

Menino quieto só pode estar doente ou aprontou alguma travessura. Essa era a regra dos adultos nos anos de minha infância. E era bem difícil lidar com essa lei torta, pensávamos nós. Afinal, o que mais valia a pena: ser arteiro ou obedecer todas as ordens dos mais velhos? Sim, porque aqueles que saíam da linha eram sempre pegos, de uma forma ou de outra, recebendo algum castigo. E os que mostravam o banzo do vento Nordeste, fatalmente eram levados à casa do pinhão roxo. Era lá que morava seu Biu, o benzedeiro.


Ali moravam todos os mistérios e temores do mundo. Pequena, mal aprumada no pau-a-pique, com palhas sobre as ripas frágeis, teto quase tocando o chão. Na soleira, troncos de coqueiros descascados, cobrindo o barro vermelho do piso tosco. Embaixo do barro do chão deveriam se esconder todos os segredos da cidade, colhidos pelas rezas fortes.

Gatos, dois cachorros magros e muitas galinhas no terreiro, cercado pela plantação do pinhão roxo, usado para arrancar os males de qualquer cristão.


O banzo, sem querer me encontrou um dia. Não comia, perdi o viço, os ossos saltavam à pele, diziam as comadres de minha mãe. Dona Iracema, preta velha - que me fazia todas as vontades e me dava torrões de café com açúcar nos fins de tarde – pediu e foi atendida. Seu Biu era o remédio.


Busquei o topo da goiabeira. Meus irmãos me encontraram e me entregaram de bandeja. As batidas em meu peito explodiam nos ouvidos, na testa, na palma da mão, nos pés. O banzo só piora, o banzo só piora, leva logo minha comadre. Ouvi a romaria por todo o caminho.

Entrei quase arrastada, mais de medo que de doença. Fechei os olhos e senti o bafo quente do fumo de rolo invadindo meu rosto. Tossi e abri os olhos. Um enorme chapéu tomava todo o espaço do casebre. Dele surgia o rosto caboclo, perfurado, com poros enormes, talhos profundos esculpidos pelas rugas. Aquela mão crespa, descomunal, de unhas marrons, tocou rapidamente meu rosto. “Não tenha medo, menina-nova”. O que veio depois parecia ser dito em língua de outro mundo. O pouco que entendi, enquanto o pinhão roxo lambia meu corpo, jamais esqueci.


“Todo o mal, seja macumbeiro e seja feiticeiro, saia do teu corpo pelas mãos de Deus. Todo o mal, seja macumbeiro e seja feiticeiro, saia do teu corpo pelas mãos de Deus”. Em seguida, vinha o refrão afinado das comadres de minha mãe: “Amém, Amém”.

Aquilo deve ter durado menos de meia hora, mas para mim foi a eternidade. O pinhão, depois de balançado, batido, maltratado, murchara. “Olhado forte na menina quebrou todo o pinhão. Mas a coisa ruim foi embora. Banho de lavanda e mingau de milho”.


De vez em quando o banzo do mundo tenta me pegar. Espanto o quebranto com as lembranças, com os amigos e mingau de milho. E, sempre que posso, tento trazer de volta a pureza de minha gente simples, que desconhecia completamente os verdadeiros males do mundo.

Receita perfeita

E então, de repente, você se vê diante daquele mesmo sorriso que lhe fez tão feliz por breves instantes que duraram uma eternidade. Ou sente novamente o cheiro que tirava o fôlego _ misto de solo molhado pela chuva e frutas da estação. Pressente, de longe e vindo sem pressa, aquele som gostoso de brisa, de água corrente batendo nas pedras, e tudo vira um grande parque de diversões.

O estômago revira, como se a estrada que se abre bem à sua frente fosse uma enorme montanha russa ou seus pés ganhassem velocidade e lhe empurrassem numa pista de corrida, sem freios e sem medo algum.

Nada pode lhe deter, porque você tem a força dos deuses. Nada é mais saboroso do que aquele estalo na face, nada é mais quente do que aquele ardor queimando o rosto. As palmas das mãos viram fontes, de onde jorra um suor frio, regando todas as sementes do mundo. E, assim, um canteiro colorido preenche todos os espaços.

O frio na barriga, os tambores no peito, a sensação de paz. É assim que a gente fica quando a paixão chega, sem aviso, sem motivo aparente. Você se vê preso àquela vontade de estar perto do ser humano que resume todas as alegrias, todos os lugares queridos. Uma só pessoa resume tudo que lhe faz bem.

Não é por aquele cabelo, de um tom negro inigualável, nem pelo jeito de andar que desconcerta ou pela voz que joga todas as canções preferidas, todas as preces fervorosas, todos os versos dos grandes poetas no ar. Muito menos porque ele faz o melhor brigadeiro de colher ou sabe tocar violão como ninguém. Não é porque naquela noite chuvosa, quando o dinheiro parco no bolso só dá para comprar uma pipoca, ele abre um guaraná e finge que é vinho branco e sorri ao seu lado vendo desenhos animados e transforma isso no melhor programa do mundo.

É tudo isso junto, é uma panela cheia de coisas boas que lhe é servida à mesa, num prato cheio de felicidade. Estar encantado, enamorado, apaixonado é ficar completamente cego, sem chance alguma de enxergar defeitos ou o resto do planeta em volta. É sentir-se anestesiado, embasbacado, sem direção, embora a vida ganhe todos os sentidos.

Descobri, enquanto passeava por dentro de mim, pensando em todas as escolhas que já fiz para me manter feliz, viva, com a sensação de que achei meu verdadeiro intento nessa vida. É simples, é fácil assim. Descobri isso ontem mesmo: buscamos no outro o que de melhor existe em nós. Não é de um estranho que ganhamos o maior presente. É das melhores lembranças da vida que se faz um grande amor.

Canto de liberdade

Enquanto a maioria aproveitava o sol e os banhos no riacho, ele andava léguas antes do sol nascer. Saíam, os dois filhos, o pai e um tio, com chinelos gastos, panos protegendo a cabeça, chapéu de abas largas e facões na cintura. Prontos para buscar a sobrevivência, nos cortes grosseiros e firmes nos talos do canavial imenso.
 

Caminhos estreitos, folhas verdes finas, dançando e apontando pro alto. Quase não dava para ver o céu. Na estrada o caminhão ia recolhendo um a um. Ele se sentia mais bicho que menino. Então, cantava pra dentro, como havia aprendido com a mãe.
 

Um dia, chegou a arruado onde ele morava uma escola. Ele foi, achando que não ficaria nem um dia sequer ali, parado, sentado numa cadeira tosca, ouvindo alguém lhe falar de coisas que ele jamais veria. A sala era pequena, com poucos lugares e dois velhos candeeiros queimando querosene pendurados nas paredes. A algazarra misturava vozes de meninos e quase homens, querendo descobrir onde aquilo tudo levaria.
 

Foi então que ela entrou: a professora. Moça mais bonita que já conhecera. Quase criança, se medissem os anos pelo tamanho do corpo. Quase mulher, se contassem os dias pelo olhar de alguém. Com paciência, cuidado e falando de coisas que ele bem conhecia _ riacho, cana caiana, frutas da estação, broa de milho, ela foi mostrando como para cada coisa vivida existiam sinais. Era, talvez, a porta que lhe mostraria a saída para a vida sonhada. Aprendeu a ler, escrever e contar. Aprendeu mais sobre o que existia do lado de fora das cercas. Criou asas. Juntou coragem, moedas e duas mudas de roupas e saiu dali.
 

Anos depois, com calos nas mãos e na alma velha, voltou à usina. Viu ao longe o canavial em chamas, meninos na mesma função e buscou o riacho. Por tanto tempo viveu ali e jamais pôde aproveitar aquele banho. Ensaiou o primeiro contato, tirou os sapatos e se deixou afundar nas águas geladas. O peito acelerou tanto que a garganta não segurou o que vinha guardando ali dentro. As mãos tentaram jogar o riacho pro céu. O canto de menino, que sempre retumbou dentro dele, saiu aliviado, feliz.
 

Só agora, tanto tempo depois do primeiro dia diante das letras _ que lhe deram rodas aos pés e asas para todos os sonhos _ ele podia ser criança e festejar a vida, com toda a liberdade.

Estranhos

Eu, minhas perspectivas e minhas crenças, de mãos dadas pelas ruas de Tubarão. Com todas as minhas certezas amarradas, achando saber quase tudo do pouco que vivi, esbarrei naquele homem.
 
O sol fervente do quase meio-dia não ajudava muito a traduzir qualquer pista sobre pessoas ou coisas. Eu queria mesmo escapar do calor, pagar as contas e apressar o passo, antes do trabalho. Mas ele, ali no meio do caminho, me fez parar e olhar para os lados, diminuindo a marcha agitada da sexta-feira.
 
Falando apressado _ numa parada de ônibus, apoiado na velha bicicleta _ era ouvido por estranhos, que absorviam sua vida, espantados. Sem paradeiro, ganhava o mundo. Encharcado de suor, maltrapilho, barba por fazer, misturava força e cansaço nas expressões.
 
Devo ter ficado mesmo impressionada, porque ele me percebeu e se percebeu comigo. Despediu-se dos ouvintes e atravessou a rua, quase ao meu lado. Fingi estar novamente em minha pressa cotidiana e entrei numa loja qualquer. Minutos depois, ele também entrou.
 
Sem licença, pediu a atenção dos clientes, funcionários, abriu sua maleta e pediu ajuda. Poucos se importaram, cheios de suas vidas, perspectivas e crenças, como eu. Tentei ser um deles, mas não deu. Parei e ouvi. Dei minha parca contribuição e fui abençoada, em retribuição.
 
Entre os que pareciam não estar ali, alguém lhe jogou a arrogância comum dos humanos na face. Em resposta, ele usou de altivez e desenrolou todo seu novelo. Ficamos ali, acompanhando o duelo dos dois, que não tinha fim. Em seu falatório, disse não se surpreender mais com o mundo. As estradas, as dores, as humilhações e desilusões já haviam lhe ensinado tudo. Desaprendeu a ser gente, disse. Preferia lidar com bichos. "A maldade é o que alimenta esse tempo. Os bons silenciam para não serem tragados", disparou.
 
Senti covardia e compaixão se apossando de mim. Penso, aqui comigo, o que faz dos homens irmãos? O que faz alguém julgar pela roupa que cobre um corpo, pelo sapato que se usa, pelo suor ou pelo perfume?
 
O que faz um semelhante cuspir veneno no outro pela cor da pele ou pelo dinheiro que se leva no bolso? O que faz de mim alguém melhor do que aquele homem? É triste o desconhecimento humano a respeito da própria raça e dos motivos de estarmos aqui, no mesmo tempo, no mesmo espaço.
 
Tudo finda, tudo é tão breve, tudo acaba em pó. Voltei para casa lembrando das palavras ásperas que o moço da loja jogou no pedinte e das palavras boas que ele me lançou. Quem na verdade é o miserável dos dois?
 
Não sei se mereço as bênçãos que recebi, através dele. No entanto, me sinto bem com o presente. Do moço rude nem lembro o rosto ou os panos que lhe cobriam de arrogância. Mas aquele velho _ que seguiu seu caminho com sua história e sua velha bicicleta _ sei que irá comigo.

Canção das lavadeiras

Elas passavam cantando, antes mesmo do sol se exibir por inteiro e chamar todo mundo à vida, quando o friozinho da madrugada tentava segurar as horas, molhando a grama verdinha lá fora. Adorava o ritual dos sábados. Bastava ouvir o chiado dos chinelos e o burburinho do grupo, saltava da cama, lavava o rosto e me jogava.
A maioria (entre as quinze) já havia dado o filho para meus pais batizarem, então, me deixavam seguir estrada afora. O que para elas era um ritual, misturando obrigação e prazer, dever e alegria, para mim era a mais perfeita festa. O caminho era longo, mas quase não sentia o barro do chão querendo virar braseiro sob meus pés.
A empreitada tinha que valer a pena e render várias tarefas ao mesmo tempo. Já que eu insistia tanto naquilo, teria que me fazer útil e ajudá-las. Era preciso catar carrasqueiras, coquinhos da estrada, pitanga, caju e araçá, que seriam jogados dentro da antiga saca de farinha _ maloca da nossa produção da beira de estrada.
As árvores do caminho eram de todos que passassem por ali, então, se eram de todos também nos pertenciam. Os restos mortais dos coqueiros também, por isso podíamos pegar toda a lenha do mundo, que ninguém nos cobraria depois.
Como dançarinas, equilibravam, sobre as cabeças, rolos de pano bem montados, onde levavam as bacias de alumínio, divinamente brilhosas, areadas, espelhando cada uma de nós.
Elas riam da minha festa e quando íamos nos aproximando do riacho, como mágica, começavam a cantoria. Uma chamava os versos, as outras cobriam o refrão. Saudades de maridos, roubados pelo mar. Louvações à Iemanjá, às sereias. Até a produção das casas de farinha virava música.
Eu me esbaldava de rio, de música, histórias e sorrisos fartos. O almoço era feito ali mesmo. Latões serviam de panela, onde caranguejos (catados no mangue ao lado) eram cozidos. Ostras eram tiradas nos talos finos das árvores fincadas na lama e comidas cruas, com sal. A água era levada em pequenas cumbucas de barro, fria e saborosa.
Não havia passeio melhor. Chegava em casa, no final da tarde, com o sol se despedindo do mundo, feliz. Depois de um bom banho, um belo prato de sopa e de aconchego de mãe, me entregava ao sono, embalada pelas cantigas do rio e pela felicidade pura, colhida das lavadeiras.

Banho de chuva

Aquele dia comprido parecia que não ia acabar mais. Chuva que não parava. Fina, grossa, com vento, silenciosa. Chuva, chuva, chuva. E eu ali, dentro de casa, olhando pelas frestinhas que me restavam pela janela. Querendo brincar lá fora, sem poder. "Invente algo pra fazer em casa", disse meu pai. "Já pensou nas crianças que não têm onde morar?", soltou, lá da cozinha, a minha mãe.

Eu não estava muito querendo saber das outras crianças, sinceramente. Nem queria perder meu tempo com invencionices de menina dentro de casa. Queria mesmo era aquela chuva. Sim, lá fora. Queria pular na lama e me sujar de vermelho, queria fazer bonecos e panelinhas de barro, para depois brincar de casinha com as amigas, queria cair no mar e fingir que era um lençol quente, me protegendo da água que caía do céu.

"Menino não tem querer", era o que diziam os mais velhos. E eu tinha que obedecer, sem bico, sem reclamação e sem batidinhas no pé. Não adiantava, aquela chuva não seria minha. Não seria? Pois bem...

Esperei o primeiro descuido dos meus pais, que não dispensavam o cochilo depois do almoço. Olhei em volta, conferindo se havia irmã mais velha na área de risco, pisquei para a irmã do meio _ que também sonhava com o aguaceiro na rua _ e pulei a janela. Quase perco os dedos das mãos, na pressa da fuga, e machuquei feio os joelhos, quando ganhei as ruas. Nada importava, a chuva era minha.

Deus nos abençoa quando manda chuva. Isso eu aprendi com minha avó sertaneja. Deus fala com a gente através dela. Quando está zangado, manda trovões e raios. Quando está contente, manda a garoa fina, para regar o mundo todo. Deus é chuva fina, molhando a grama, a calçada, o barro vermelho, o mar. Deus corre no riacho, evapora e volta para o céu.

Eu já sabia disso, quando era criança. Adorava a chuva, quando podia desfrutar dela. Dias de chuva só tinham graça se eu podia brincar na rua. A travessura daquele dia, é claro, foi descoberta. Rendeu uma febre, roupas molhadas e sermões. No entanto, fui feliz.

Hoje eu quis muito correr na chuva, chamar todo mundo para a minha farra. Não deu. Meu dia foi comprido, cheio de saudades e de chuva fina (dentro e fora de mim).

A estranha

Fazia frio naquela noite. O menino não se importava, queria ver a chegada da estranha. Há algum tempo o comentário no pequeno arruado era um só: ela vai chegar. Só falavam nela, só tinham olhos para a casinha amarela de janelas e portas sempre cerradas. E ele sentia que com ela algo de bom poderia acontecer ali, no lugar onde ninguém mais queria ir.
Plantou os pés na soleira. Agachou, levantou e sacudiu poeira tantas vezes que nem lembrava mais se estivera em outro lugar que não aquele: o batente da casa amarela. O pai havia saído cedo, quando a serração encobria o terreiro e não deixava passagem para visão alguma. O rio só dava sinal de estar ali porque era cantor dos bons e nunca parava de soprar a cantilena. Dia e noite.
As mãos gelavam. Juntava, levava à boca, jogava todo o ar dos pulmões para aquecer. Bermuda e camisa de tecidos gastos não lhe ofereciam o conforto necessário para o frio da serra. Chinelos rasos. Quase raspava os pés na areia grossa. Frio, frio, frio. Mas ele estava decidido: não arredaria o pé.
Quando o sono começava a lhe render, ouviu o ranger das rodas no caminho. Limpou os olhos, levantou e juntou-se ao cachorro, que latia alto na porteira torta. Demorou para perceber os vultos, que aos poucos se desvencilhavam da neblina baixa. Pararam em frente à casa e ele pôde ver então os longos cabelos finos e negros. Desde então, jamais saíram dos seus olhos. A pele parecia ter esquecido de brincar no sol. As mãos traziam dedos longos e delicados. Jamais haviam arado a terra, pensou. A estranha, apesar de não parecer com ninguém que conhecia, se fez parente próxima quando sorriu.
Obedecendo às ordens do pai, foi ajudar. Malas, caixas e aquele malote estranho, de couro preto. Tudo cheirava a cidade grande, a estrada e a mundo de verdade. A mãe chegou depressa, secou as mãos, que sempre estavam a serviço, ajeitou o lenço na cabeça e deu abraço tímido na moça. Ela era herdeira daquele pedaço de chão que ninguém era louco de querer. Pois ela quis. E ele ainda não entendia o porquê.
Café e bolo de milho, ao lado do fogão à lenha, finalmente trouxeram calor à madrugada que também resolveu chegar. E um brazeiro se formou no ar quando a moça abriu o malote de couro preto, tirou de dentro o instrumento de madeira e tocou para os anfitriões cansados.
O nome era difícil de aprender: “Rebeca?”, tentou o pai. “Rabeca, Chico, rabeca”, disse sorrindo a moça. Ficaram amigos. A rabeca o provocou por dias a fio, com a música que jogava todos os sons do mundo no ar. Às vezes gemia, reclamava, soluçava como as viúvas da seca com saudade dos maridos distantes. Outras, era alegre, serpenteava, gargalhava entre o riacho teimoso e a caatinga _ que se espalhava, malvada entre os resquícios de plantação.
O menino pegou paixão por aquilo, descobriu que a vida poderia lhe trazer surpresas boas, como a moça da cidade e a rabeca cantadeira. A música, aquela estranha maneira de juntar o céu e a terra através das cordas de metal, virou musgo na pele e no coração.

Sobre a doçura da vida

Voltávamos da escola, sempre falantes, mais juntos do que em qualquer outro momento _ afinal, aquele era o nosso instante, quando éramos só nós dois, dividindo as primeiras horas dos nossos dias.
Os mais velhos seguiam à frente, porque andar de mãos dadas com o pai era coisa para quem ainda levava lancheira e usava uniforme infantil demais. Eu adorava ser a caçula e ter o privilégio que eles desperdiçavam. Tolos, que não aproveitavam os conselhos, que não desfrutavam dos sorrisos silenciosos (fazendo o corpo dançar, como se a alma se divertisse e mandasse lhe acompanhar na festa).
Quando as minhas frases soltas jogavam mais ingenuidade do que o costume, então eram gargalhadas fortes que enchiam o ar. Eles, os mais velhos, fingiam não se importar, mas então eu gargalhava junto, balançava o corpo junto, provocava com a nossa farra.
Num daqueles dias, porém, abusei da paciência do meu velho, quase ganho umas palmadas, mas entendi o significado da doçura, primã-irmã do amor de pai. Passamos por uma vitrine tentadora, loja nova no caminho, com filhotes de cães pulando para todos os lados. Latidos finos, patas minúsculas e arredondadas, pelos fofinhos, olhos espertos pedindo colo. “Quero um, compra?”, o pedido. “Não”, a sentença curta e definitiva. “Quero um, quero um, quero um” foi a ladainha pelo longo trajeto, uma quadra após a outra. Atrasei os passos, empaquei, ameacei greve de silêncio, reclamei da vida. E ele, firme. Até que _ com aquela compaixão que só os pais sentem frente ao choro de um filho _ ele sugeriu: “Que tal um pão doce?”.
Amuei e foi difícil desfazer a tromba. Onde já se viu oferecer um pão doce em troca daquele cachorrinho perfeito? Havia perdido a batalha. Fui rendida e cedi aos encantos dos pães cheios de coco açucarado. Ele parou no balcão, pediu os pães e ficou ali, pacientemente, esperando que desfrutássemos do lanche em horário indevido e que certamente lhe renderia reclamações em casa.
Entre uma mordida e outra, seus olhos me acertaram. Toda a malcriação já havia sumido, da minha parte. Todo o amor do mundo permanecia com ele, feliz diante das crias. Terminado o lanche, seguimos adiante, de volta para casa. Colamos novamente nossas mãos e retomamos os sorrisos de onde paramos.
Entre tantas outras coisas boas que meu pai me deixou, a doçura dos seus gestos é meta que tento alcançar diariamente. Mas, confesso: estou longe de chegar aos pés de tamanha grandeza.

Apaguem as luzes

Chegando do trabalho, durante a semana, fui surpreendida com o apartamento das minhas vizinhas às escuras. Somos sempre levados a buscar respeitar os que dividem conosco o mesmo espaço no condomínio, mas isso fica complicado quando os apartamentos são praticamente colados. Da janela da minha cozinha _ onde me debruço por alguns bons minutos, assim que chego em casa, para fazer o jantar _, não há como não olhar para a casa alheia. Bem que tento, mas não dá mesmo. A não ser que eu vende meus olhos, torça o pescoço para as costas ou não tire os olhos da pia, sem elevar a cabeça um só instante.
Pois bem, as moças estavam sem luz. Pagavam por uma falha de ex-moradores, que desocuparam o imóvel sem pagar as contas. Cortaram. Imaginei como seria ruim, estar ali, sem o barulho da televisão, a luminosidade da luz elétrica fazendo a noite virar dia, a possibilidade de um belo banho quente... Até que, entre as velas acesas sobre a mesa, onde elas conversavam, sorriam e bebericavam alguma coisa, percebi o quanto estavam bem, o quanto aquele apagão havia aproximado as duas.
Como disse, não quero ficar olhando a vida alheia, não é mesmo do meu feitio, mas não pude evitar. Sempre que cheguei, nos dias em que a luz imperava naquela casa, o local parecia vazio. Com luz, mas vazio. Não via ninguém passar, não ouvia vozes, mas a televisão sempre estava ligada.
Penso que, para não perder nenhum lance das novelas, elas preferiam ficar quietas, sem muita conversa, sem tempo para perder (uma com a outra), sem trocas.
Lembrei dos velhos dias de apagão, quando faltar energia era algo comum nos vilarejos da infância, principalmente no verão, quando a praia se enchia de turistas. A sobrecarga sempre nos deixava na mão.
Numa das noites mais esperadas do ano, perto do Natal, quando toda a vizinhança havia combinado fazer quitutes e se reunir para ver o show de Roberto Carlos, a distribuidora não suportou e a luz foi embora bem na hora marcada. Lembro que praguejamos por alguns minutos, esperamos que a sorte batesse à porta e nos trouxesse a luz de volta, até que alguém pegou um violão.
Fomos todos para o terraço, onde mangueiras, cajueiros e coqueiros nos protegiam e sopravam a brisa que vinha da praia. Jogamos esteiras no chão, forramos toalhas e trouxemos os quitutes. Deitei na esteira e ganhei de presente todas as luzes do universo, ali, só para mim. Não poderia haver espetáculo maior do que aquele, nenhum show chegaria aos pés.
Homens, mulheres, crianças, todos cantando juntos canções nossas, dos nossos pais, dos nossos avós, e as velhas canções de Roberto. Comemos, rimos, e de repente já nem lembrávamos que a luz havia ido embora. Estávamos completamente iluminados.
Vendo as luzes apagadas na casa das minhas vizinhas tive a vontade de também apagar as minhas, pegar o violão e acender minha alegria, com o violão em punho. De vez em quando, tenho para mim, é bom apagar as luzes.

O jubilado

O cheiro do café enchia o ar de bom dia. Aos poucos a cidade amanheceu. Fartura de expectativas e paz. O ruído no portão foi se transformando em algazarra quando elas entraram esbaforidas, aceleradas, falando ao mesmo tempo. Novidades à vista, pensamos.
Na cozinha o fuzuê estava armado. Minha mãe tentava acalmar as falastronas, que zumbiam, gesticulavam, despejando nomes conhecidos, entre goles fartos de café e enormes pedaços de bolo. "Jubilado, o menino, comadre! Jubilado", anunciava Sônia. "Dizem que a festa vai ser grande dessa vez. Já mandaram benzer a capela nova, tem banda de música ensaiando no salão paroquial e dizem que vem gente de tudo o que é canto para as homenagens", soltou Luzia.
Nos entreolhamos - eu e meus irmãos - e tentamos entender o porquê de tanta confusão. Afinal, quem era o jubilado, santo Deus? E por que festa para uma coisa assim? "O menino fez bonito", refletiam, reticentes. Batata! Elas não sabiam que o "feito" do menino era na verdade uma tragédia. Nos divertimos com aquilo, já no primeiro instante em que entendemos o engano. Dona Nadir atravessou o caminho entre o terraço e a cozinha feito um raio. O pano de prato gasto, amarelado, jogado nos ombros, indicava a sofreguidão dos curiosos. Lenço retocado de minuto em minuto. Corpo estourando em bolhas. Era conhecida a alergia da bodegueira, madrinha de todos os bêbados do vilarejo. O balcão de Dona Nadir era ponto de encontro de todos eles, dia e noite. Tudo que acontecia nos arredores chegava primeiro por lá. Era a imprensa local, aquele balcão tosco.
Dessa vez ela soube com atraso e a urticária deu sinal de vida. "Mas já avisaram ao prefeito?". Sim, sim, o prefeito já havia sido avisado, as diretoras dos grupos escolares, as benzedeiras, cozinheiras, fazendeiros, todo mundo sabia do grande triunfo de Vandelson na Capital. Jubilado. Minha mãe tentava falar, mas não conseguia. "Não tem que fazer festa, gente. O menino foi jubilado", tentou. Os olhares praticamente a fuzilaram. Podíamos quase ouvir os pensamentos das futriqueiras. "Ela está é com inveja porque não foi filho dela". Saíram em cortejo silencioso, dizendo voltar mais tarde.
Corremos pra calçada. Sentada no muro de casa, vi passar meninos de pernas finas empurrando carros-de-mão com gelo e pó-de-serra, cabritos com pés amarrados (prontos para o abate)e engradados de cerveja. Todo mundo queria dar sua contribuição para o herói da cidade. À noite a festa foi inesquecível. Discursos, foguetório, forró, comida e bebida até não se querer mais. No palanque, Vandelson tremia - mudava de cor, sorria amarelo, nos olhava sem jeito. Ele sabia que nós sabíamos. A diversão foi maior do que pensávamos. Jubilado.
Jamais vou esquecer o dia seguinte. Faixas no chão, restos de festa. Na parada do ônibus, antes de ir para a escola, encontrei o homenageado, triste, com mochila do lado. Depois da festa, foi forçado a não iludir mais os pais. Expulso de casa. Vergonha.
Durou pouco tempo a mágoa. O jubilado hoje é respeitado pai de família, longe da cidadezinha que lhe fez herói. A história nunca foi esquecida por lá. Dizem que pensaram até em erguer estátua. Sorte que alguém achou um dicionário a tempo. O dono de todas as pompas e glórias acabou virando a piada do século.

Ela e o mar

Ela disse que não sei mais sonhar. Ela e sua mania de teimar em dizer o que pensa, mesmo quando o que pensa nada tem a ver com a verdade. A minha verdade, pelo menos.
Ela me disse que já me viu melhor, que eu já tive mais viço, mais alma, mais paixão e mais vontade. Cobrou-me desejos dos vinte anos quando já beiro os quarenta. Cobrou-me a luz que me emprestou e esqueci de multiplicar, dividir e devolver.
Ela disse que nada mais em mim se parece comigo, que nada mais resta de bom, de tudo que já conheceu e lhe fez ter querência, afeto, admiração. Ela me disse. Disse tanto e com tamanha força que me despedaçou feio. Baqueei, tremi, suei frio e quente. Deixei-me levar por tristeza tão imensa que quase acreditei em tudo que ela disse. E com a mesma força.
Perdi o sono, a fome, a vontade. Perdi a fé, a esperança e tive medo, muito medo de ter morrido antes mesmo de viver tudo que eu pensei ter vivido. Tive medo de ter sonhado com tudo que achei tão meu, tão concreto, tão bonito e tão único. Tive medo de realmente não ser mais aquela menina. A que tudo enfrentava sem qualquer receio de não conseguir, a que buscava água na terra mais árida (e encontrava sempre), a que apostava, arriscava, com coragem e persistência.
Ela disse que era tarde demais para mim. E disse que não havia mais nada a ser feito por mim, comigo, para mim. Que os caminhos, todos, estavam fechados, apagados à minha frente. Que a luz no fim do túnel não existia, que os meus dias eram findos e minhas preces certamente não seriam mais ouvidas por Deus. E me falou em caridade... em caridade.
Ouvi tudo com amargo terrível nos lábios. Minhas lágrimas deixaram sulcos em meu rosto, marcaram a ferro a minha alma. Por onde passaram, arderam como brasa. Meu grito ficou contido na garganta, latejando, doendo, batendo forte _ como se o coração realmente pudesse me saltar à boca. Coração que eu já nem deveria ter, segundo ela. Já que tudo estava perdido em mim.
Mal sabia ela que havia um espelho em meu quarto, quando cheguei em casa. E que ele me salvou a vida.
Ainda havia em mim dois olhos. Dois olhos castanhos e lembranças. Lembranças coloridas. Havia também a música, que ouvi baixinho. Havia um pai, uma mãe e três irmãos em mim. Também encontrei lá quatro crianças lindas, que me sopraram a face, com uma ternura tão imensa que me fez sentir o beijo de Deus na primeira criatura.
Ainda havia em mim a coragem de chorar. Chorar tudo, recobrando a força, a vontade, o desejo, a fé. Quebrei meu silêncio, o jejum e todas as correntes que me travavam os pés.
Não, não é tarde. Não tenho mais vinte anos, não tenho mais a inocência, não tenho mais o vigor de antes. Tenho, no entanto, dignidade, herança boa. Tenho valentia de sangue sertanejo, tenho saudade, tenho lembranças e muita estrada atrás e à minha frente, sim.
Bendito espelho que me fez enxergar quem sou. Bendito amor que me tenho, que me fez e que me leva a querer continuar vivendo e apostando em mim.

Ela e o mar

Jamais havia visto algo igual. Entre o sertão e a nova cidade que lhe acolhia, tudo era novidade. Até mesmo as pedras do caminho, a poeira escura, quase molhada, as nuvens _ tão baixas que a impressão que tinha era de ter alcançado as alturas (ou teria o céu descido à terra?).
Os pássaros voavam bem perto do velho caminhão, que levava a família inteira, agregados, mobília, lembranças e os animais, que reclamavam de sede, calor e do sacolejo constante dos pneus carecas na estrada esburacada.
A esperança de que um dia voltariam os mantinha vivos e com forças para suportar a distância, as ausências de quereres e o enfrentamento com os novos costumes, que não lhes dariam arrego: ceder ou desistir e voltar atrás.
Mas voltar para onde? _ pensava a menina, prestes a completar treze anos, ainda amante das bonecas de pano, dos banhos de chuva (quando havia a chuva) em meio à euforia nas ruas, dos doces feitos com água e açúcar, no velho tacho da mãe, incansável madeira, dura de envergar.
Maria só pensava em uma coisa. Martelava, alimentava, acalentava somente aquele sopro bom que lhe haviam dado antes da partida: ela certamente veria o mar. Teria o mar todinho pra si, sem ter medo algum de que um dia ele pudesse ter fim.
“O mar não seca. Finge que vai embora e volta, o tinhoso”, contou Jandira, prima de sua mãe, antes do último dia em casa. E foi falando, quase como quem dizia uma reza, contava segredo, pra que o mundo não soubesse que ela sabia. Mas ela sabia. E foi dizendo: “O mar brinca com os pés da gente, fica manso, fica brabo, fica manso fica brabo... É como se fosse o céu, só que mexe o tempo inteiro e tira a areia debaixo dos pés da gente”.
A menina ia se embalando, pensando no balanço que as palavras tinham e pôde sentir aquilo que lhe diziam ser o mar.
“Tem mar que parece gente. Canta, fala baixinho, sopra coisa boa, sopra coisa ruim. Tem mar que bufa feito a serra, quando cachimba no fim da tarde. Tem mar que só fica ali, quieto, sem se mexer, pronto pra dar o bote. É preciso ter cuidado com o mar. Porque ele às vezes enfeitiça e puxa a gente pra dentro dele. E o mar, o mar não tem cabelo onde a gente possa se agarrar”, contou Jandira.
Aquela romaria lhe veio à mente, como se aliviasse o cansaço da viagem. Até que, de repente o motor ficou calado. Alguém lhe tirou do sono leve e mostrou a casa nova. O mar ainda não estava ali. O encontro ficou para anos mais tarde, quando já tinha marido, filhos e netos. Muitos netos _ nascidos e crescidos de cara para o mar.
Naquela tarde, quase meio século depois da despedida, do adeus a Jandira e ao sertão, ela não esquecia os conselhos e a reza doce que falava do mar. Seu coração sertanejo avisava às crianças, que traziam seus traços e repetiam seus gestos, sorriam, quando ela repetia sem parar: “Voltem! Voltem! O mar não tem cabelo!”.
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