quinta-feira, maio 26, 2011

Ela e o mar

Ela disse que não sei mais sonhar. Ela e sua mania de teimar em dizer o que pensa, mesmo quando o que pensa nada tem a ver com a verdade. A minha verdade, pelo menos.
Ela me disse que já me viu melhor, que eu já tive mais viço, mais alma, mais paixão e mais vontade. Cobrou-me desejos dos vinte anos quando já beiro os quarenta. Cobrou-me a luz que me emprestou e esqueci de multiplicar, dividir e devolver.
Ela disse que nada mais em mim se parece comigo, que nada mais resta de bom, de tudo que já conheceu e lhe fez ter querência, afeto, admiração. Ela me disse. Disse tanto e com tamanha força que me despedaçou feio. Baqueei, tremi, suei frio e quente. Deixei-me levar por tristeza tão imensa que quase acreditei em tudo que ela disse. E com a mesma força.
Perdi o sono, a fome, a vontade. Perdi a fé, a esperança e tive medo, muito medo de ter morrido antes mesmo de viver tudo que eu pensei ter vivido. Tive medo de ter sonhado com tudo que achei tão meu, tão concreto, tão bonito e tão único. Tive medo de realmente não ser mais aquela menina. A que tudo enfrentava sem qualquer receio de não conseguir, a que buscava água na terra mais árida (e encontrava sempre), a que apostava, arriscava, com coragem e persistência.
Ela disse que era tarde demais para mim. E disse que não havia mais nada a ser feito por mim, comigo, para mim. Que os caminhos, todos, estavam fechados, apagados à minha frente. Que a luz no fim do túnel não existia, que os meus dias eram findos e minhas preces certamente não seriam mais ouvidas por Deus. E me falou em caridade... em caridade.
Ouvi tudo com amargo terrível nos lábios. Minhas lágrimas deixaram sulcos em meu rosto, marcaram a ferro a minha alma. Por onde passaram, arderam como brasa. Meu grito ficou contido na garganta, latejando, doendo, batendo forte _ como se o coração realmente pudesse me saltar à boca. Coração que eu já nem deveria ter, segundo ela. Já que tudo estava perdido em mim.
Mal sabia ela que havia um espelho em meu quarto, quando cheguei em casa. E que ele me salvou a vida.
Ainda havia em mim dois olhos. Dois olhos castanhos e lembranças. Lembranças coloridas. Havia também a música, que ouvi baixinho. Havia um pai, uma mãe e três irmãos em mim. Também encontrei lá quatro crianças lindas, que me sopraram a face, com uma ternura tão imensa que me fez sentir o beijo de Deus na primeira criatura.
Ainda havia em mim a coragem de chorar. Chorar tudo, recobrando a força, a vontade, o desejo, a fé. Quebrei meu silêncio, o jejum e todas as correntes que me travavam os pés.
Não, não é tarde. Não tenho mais vinte anos, não tenho mais a inocência, não tenho mais o vigor de antes. Tenho, no entanto, dignidade, herança boa. Tenho valentia de sangue sertanejo, tenho saudade, tenho lembranças e muita estrada atrás e à minha frente, sim.
Bendito espelho que me fez enxergar quem sou. Bendito amor que me tenho, que me fez e que me leva a querer continuar vivendo e apostando em mim.